Caso vivêssemos na Idade Média, a declaração que estou prestes a fazer
poderia render uma condenação a morrer queimado na fogueira. Cinco séculos mais
tarde, é provável que teria conseguido escapar das acusações de bruxaria, mas
não da inclemente palmatória, ou de ter o braço amarrado por trás das costas na
escola e durante as refeições. Tendo em vista estes tempos árduos de
intolerância e exclusão, nós, canhotos, não temos muito do que nos queixar da
vida neste século XXI; a não ser pela ainda onipresente sensação de habitar um
mundo que não foi pensado para nós.
A dimensão do que representa ser canhoto numa sociedade onde todas as
coisas foram criadas para quem utiliza preferencialmente a mão direita pode ser
contemplada a partir da observação dos significados de expressões como
“canhestro” e “sinistro” (do latim, que
provém do lado esquerdo). Também pudera, somos apenas 10% da população
mundial, uma retumbante minoria de quase 600 milhões de pessoas, privadas de
sentar em carteiras adequadas, abrir portas, garrafas e latas da maneira que
seria mais natural, sem esquecer, é claro, da conveniência de se escrever com
uma caneta esferográfica sem borrar o papel com a própria mão.
Gênio canhoto |
Agora me digam, que canhoto sabe disso? Aliás, quem foi que escolheu
essa data?? Tá tudo errado! Pessoal, não adianta mais ficarmos aí, pelos
cantos, reclamando da maçaneta, do braço do violão, do mouse de fio curto no
computador da lan house. Se nós queremos ser considerados no planejamento de
uma sociedade mais inclusiva para os canhotos, precisamos fazer ouvir o som de
nossas vozes, fazer sentir o peso de nossas mãos esquerdas. Vamos ganhar as
ruas e protestar, trafegar com os carros em mão inglesa, espalhar cartazes
contendo palavras de ordem escritas a partir da direita, queimar em praça
pública símbolos da opressão, tais como abridores de lata, tesouras e
saca-rolhas. Vamos lembrar ao mundo que 40% dos melhores tenistas são gente
nossa, assim como eram todos os 8 finalistas de esgrima nas Olimpíadas de 1980
em Moscou, ainda que não saibamos exatamente o porquê. Vamos festejar a
genialidade de Baudelaire, Beethoven, Charles Chaplin, Maradona, Jimi Hendrix,
Leonardo da Vinci, Picasso e, por que não, de Jack Estripador.
Se a ciência comprovou que nosso cérebros não são como o dos destros,
vamos mostrá-los que podemos ser mais criativos e sarcásticos, mais eficientes
em matemática e em percepção tridimensional, e que sabemos lidar melhor com
informações simultâneas. Finalmente é chegada a hora de extinguir por completo
séculos e séculos de segregação e preconceito, e de atestar que nascer canhoto
não é herdar uma condição desfavorável, mas sim exercitar a diferença. Vamos
provar que, apesar de não sermos maioria, nós também sabemos fazer direito.
Quer dizer, esquerdo, porra!
Texto de Bruno Medina, publicado no blog Instante Posterior. http://g1.globo.com/platb/instanteposterior/
O autor é tecladista da banda Los Hermanos.